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BOLETIM CLÍNICO - número 2 - outubro/1997

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos

9. A Atenção e os Estados de Consciencia - Mário Luiz de Camargo(1)


O termo consciência pode ter vários significados dependendo da intenção e do contexto em que ele é empregado. Todavia, aqui consciência será entendida como a percepção do que se passa em nós e ao nosso redor. É a faculdade pela qual o homem pode perceber a sua própria existência e a realidade. É ter ciência, conhecimento ou vivência do que quer que seja.

Entretanto, a natureza da consciência pode variar e o ser humano tem a possibilidade de experimentar vários níveis ou estados de consciência. Assim, podemos viver: o sono profundo sem sonhos, o sonho, a obnubilação, o coma, o estado de vigília, a "consciência de si" e a "consciência objetiva".

Conforme muda nosso estado de consciência, ocorre também uma transformação na natureza da realidade percebida de modo que vivenciamos outros níveis de realidade.

E em cada estado de consciência há uma qualidade diferente de atenção.

Sono Profundo sem Sonhos
Vejamos o que se passa quando dormimos. No sono profundo sem sonhos, não há atividade mental nem corporal. Os estímulos provenientes do meio externo captados pelos órgãos dos sentidos não alcançam o nível consciente. Não chegam também estímulos provenientes do nosso interior, tais como emoções, pensamentos ou imagens mentais. Não há percepção e a atenção fica em repouso.

Sonho
No sonho existe uma atividade espontânea do cérebro produzindo imagens oníricas puramente subjetivas que desfilam pela consciência deixando leves impressões na memória ou, muitas vezes, sem deixar traço algum. No entanto, a atenção fica completamente ligada e identificada a estas fantasias. E assim, quando sonhamos, nós vivenciamos e acreditamos, iludidos, que estas imagens mentais são a realidade única e suprema.

Estado de Vigília
Quando acordamos, percebemos a realidade ilusória dos sonhos, pois passamos para um outro estado de consciência conhecido como "consciência lúcida" ou "estado de vigília". É o estado em que estamos agora, lendo ou escrevendo. Nele vivemos, trabalhamos, amamos e imaginamos que somos seres plenamente conscientes. Quando estamos nele, acreditamos que a realidade vivenciada é a única possível, mas isso também é uma outra ilusão que o próprio estado produz.

Atenção Dispersa
Na verdade, neste estado, a maior parte do tempo nossa atenção está dispersa e mudando constantemente o foco de interesse. É como folha ao vento. É como macaco na floresta pulando de galho em galho. É uma borboleta esvoaçando de flor em flor. Impressões as mais variadas atraem a atenção de um lado para outro. E nós não nos damos conta disso. Não há unidade nem estabilidade interior.

Neste estado, a atenção é instável e fragmentária. O homem não está plenamente consciente de si mesmo e não percebe seus desejos, crenças, medos e preconceitos contraditórios que o dirigem a cada momento. Acredita piamente que pode determinar a direção de sua própria vida, mas na verdade é um joguete de uma série infindável de desejos desencadeados por estímulos que continuamente atingem sua atenção.

Atenção Captada
Mas a atenção também pode ser capturada e fixada por um estímulo que seduza seu interesse. Assim nossa percepção fica totalmente ocupada com aquilo que a capturou. Seja uma novela na TV, um jogo de futebol, um livro interessante, uma conversa animada ou o desfile interminável de nossos próprios pensamentos. Nessa situação, não temos liberdade de escolha e ficamos completamente escravizados por aquilo que, porventura, preencha nosso campo de consciência.

Atenção Dirigida
Há ainda a possibilidade da atenção ser dirigida. O exemplo típico é o estudante às vésperas do exame final concentrado em cima do seu livro. De tempos em tempos, sua atenção vagueia, tenta se libertar e se dispersar do estudo. Mas as provas estão perto e o estudante se esforça em focalizar e manter sua atenção no texto. Aqui há um certo controle da atenção mas não há mais liberdade interior do que nas situações anteriores de "atenção dispersa" ou "atenção captada". Porque o estudante está tão imerso e identificado na tarefa que não sobra nenhum espaço interior livre no seu campo de consciência.

Obnubilação da Consciência e Coma
Já no âmbito da patologia podemos ter a "obnubilação da consciência". É uma alteração do estado de vigília que pode variar desde leves distúrbios da consciência até seu apagamento total no "coma". Neste estado, diversas etapas da atividade do sistema nervoso são afetadas, mas a principal característica é uma redução na capacidade de dar e manter a atenção. A pessoa é ainda menos dona de si mesma. Distrai-se constantemente, os dados sensoriais não são avaliados corretamente e os pensamentos se atropelam confusamente. Sua atenção é efêmera, oscilante e o campo de atenção é estreito. A percepção se altera de uma tal maneira que a pessoa chega a ficar desorientada no tempo e no espaço e a realidade se distorce.

"Consciência de Si"
Existem mais dois estados superiores de consciência que normalmente não são vivenciados pelo homem. São possibilidades acessíveis a qualquer um e, de fato, todos nós já tivemos experiências destes estados superiores. No entanto, geralmente são só lampejos, momentos passageiros que não reconhecemos como estados plenos. Muitas vezes, nem sequer nos lembramos deles e ficam apenas vislumbres das possibilidades de outras realidades.

O primeiro deles é o conhecido como "consciência de si", "lembrança de si", ou consciência do seu próprio ser. Normalmente esse estado é resultado de um trabalho longo e árduo. E as pessoas não admitem empreender esse trabalho porque, justamente, o principal obstáculo para o desenvolvimento da "consciência de si" no homem é a sua convicção de que já é um ser completamente consciente.

Pensa que tem uma unidade interior e uma vontade unificada. Tem a ilusão que possui a capacidade de fazer e a liberdade de decisão. Entretanto, essas qualidades só se apresentam no estado de "consciência de si", onde a atenção tem um eixo de sustentação e está expandida de tal modo que engloba os fenômenos observados e o observador ao mesmo tempo. Há uma divisão da direção da atenção para fora e para dentro de nós simultaneamente.

Consciência Objetiva

O estado de "lembrança de si" é o caminho legítimo para o outro estado mais alto de consciência - a "consciência objetiva". Conhecida também como "consciência mística", "consciência cósmica", "iluminação", "Samadhi", "Nirvana", "reino dos céus", "comunhão com Deus", e mais um sem número de outros nomes.

Todas as antigas tradições religiosas nos trazem como legado espiritual os testemunhos da possibilidade de tal estado de consciência. Nele a pessoa conhece a verdade, ou seja, percebe as coisas como elas são objetivamente. Obtém assim, a liberdade dos grilhões da ilusão "e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará." (Jo 8, 32). Nessa condição, a consciência do momento presente é total, de tal modo que o tempo se transforma em um eterno agora. A atenção é pura e plena. Ela é o silêncio e o espaço ao mesmo tempo. Ela é o eixo central imóvel no qual a vida gira e dança ao seu redor.

Notas e Referências Bibliográficas:

(1) Médico Oftalmologista da Faculdade de Saúde Pública da USP e membro do American College of Surgeons.